*Por Sheron Neves, colunista da Escola de Criação e professora do Storytelling e Transmídia para Marcas

Um dos maiores especialistas em transmídia e convergência midiática do país, o Prof. Dr. João Massarolo leciona no Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde também coordena Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som, responsável pela publicação da revista eletrônica GEMInIS. Confira:

1. A narrativa transmídia é uma tendência ou apenas um modismo?
É uma tendência importante para o ecossistema audiovisual, gerada pelos processos de convergência cultural e tecnológica, e que atualmente representa novas perspectivas de produção e criação de formatos nos campos da publicidade, marketing, videogames, televisão, cinema, jornalismo e educação.

A noção de “narrativa transmidiática” foi introduzida pelo acadêmico norte-americano Henry Jenkins para nomear experiências que se expandem em várias plataformas. Para ele, trata-se de uma estrutura narrativa que se expande em diferentes linguagens e meios, construindo mundos de histórias, e assim trazendo num novo paradigma para o entretenimento audiovisual.

Essa nova forma de entretenimento permite ao público interagir com um mundo fragmentado em várias partes; um mundo-enigma cuja resolução depende das capacidades investigativas dos usuários das redes sociais, oferecendo como recompensa novos insights e novas experiências.



2. Como você vê a atual mudança no storytelling, na forma de contar histórias?
A dispersão textual e o trânsito por diferentes mídias que caracterizam a narrativa transmídia são uma coisa extremamente positiva no interior da cultura pop, mas não chega a ser exatamente uma novidade, pois já se encontravam presentes nos poemas homéricos. A Odisséia, por exemplo, é uma narrativa que consiste em textos orais provenientes de mitos pré-existentes organizados por um autor único. Mais recentemente, J.R.R. Tolkien criou por meio de uma tapeçaria épica o universo da Terra Média em O Senhor dos Anéis.

No entanto, o mais importante para entendermos as mudanças que ocorrem na cultura de consumo é atentarmos para as transformações no campo de relacionamentos entre produtores e/ou consumidores na sociedade contemporânea. Para Jenkins, o deslocamento transversal de conteúdos via múltiplos suportes é um processo enriquecedor, onde o poder de participação não visa destruir a cultura comercial, mas reescrevê-la, modificá-la e diversificá-la, adicionando novos pontos de vista e então circulando-a novamente, de volta às mídias comerciais. A retroalimentação do sistema permite expandir os potenciais da participação e representa uma maior oportunidade para a diversidade cultural.





3. Você pode falar um pouco sobre os ARGs?
Os jogos de realidade alternada, ou alternate reality games (ARGs), são experiências lúdicas capazes de conciliar qualidades como uma narrativa de autoria compartilhada e dispersa entre várias mídias, que se torna acessível à medida que os puzzles são solucionados. Eles se utilizam de espaços tanto físicos como virtuais, se estendendo assim, ao cotidiano de seus jogadores, sem uma barreira nitidamente visível que possa sinalizar os limites que a experiência possui.

Desta forma, o ARG é capaz de construir uma espécie de realidade ficcional/paralela escondida por trás de um quebra-cabeças que se desdobra na realidade referencial do jogador. É uma obra por si só transmídia, de forte capacidade imersiva, que pode ser utilizada como estratégia de expansão de mundo, como aconteceu no primeiro ARGThe Beast (2001), desenvolvido para o filme Inteligência Artificial (2001), ou para fortalecer o engajamento com uma marca, como no caso da campanha Zona Incerta(2008) do Guaraná Antarctica.


4. As pessoas estariam hoje vendo mais ou menos TV?
Pode-se dizer que os jovens de hoje preferem assistir seus programas favoritos em outras janelas, como a internet e os celulares. Mas isso não quer dizer que a televisão deixou de ocupar um lugar central no ecossistema audiovisual. A crescente fragmentação das audiências e o rápido desenvolvimento tecnológico sinalizam para um futuro de globalização audiovisual. As novas plataformas de entretenimento e informação formam um universo que transforma a TV num portal de acesso a conteúdos interconectados.

Os novos consumidores são ativos, seguem pistas migratórias e demonstram uma declinante lealdade a redes ou meios de comunicação. Se os antigos consumidores de mídia eram indivíduos isolados, silenciosos e invisíveis, os novos consumidores são mais conectados socialmente e utilizam o boca a boca da mídia digital para fazer barulho e chamar a atenção.

O que se observa é que houve um movimento de complexificação da estrutura narrativa seriada televisiva, o que pode ser atestado pelo sucesso de Lost, que extrapolou o nicho da TV a cabo (no Brasil) e despertou a curiosidade do grande público em relação ao destino das personagens perdidas entre teorias de mundos possíveis. Neste sentido, o que a tecnologia digital trouxe foi a possibilidade da televisão se aproximar cada vez mais do mundo real, proporcionando ao espectador dialogar com produtos que seguem uma lógica complexa, com base nos acontecimentos que são retransmitidos ao vivo, fazendo da cultura participativa um componente central da ficção televisiva transmidiática.






5. E estariam mais ou menos vulneráveis à propaganda?
Menos. O perfil desse novo consumidor exige das empresas de mídia a capacidade de preparar produtos e comunicações projetadas para atender às necessidades individuais de cada cliente, sem perder as vantagens intrínsecas do marketing de massa. Para Jenkins, cada meio deve contribuir de maneira distinta e valiosa para que a narrativa seja expandida. Os objetivos que governavam a economia de massa não funcionam mais – tentar vender um produto/serviço pela publicidade persuasiva. A emergência da cultura popular no interior da convergência midiática é um dos fenômenos mais significativos dos novos arranjos da economia digital. Na interação de “muitos com muitos” proporcionada pela convergência entre as telecomunicações e as redes sociais, o provedor de conteúdo é interpelado pelo usuário que não se satisfaz com o papel de consumidor passivo, passando a atuar como porta-voz do produto ao participar ativamente de fóruns de discussão.

Este mundo da mídia, gerado e controlado pelo consumidor, representa uma ruptura com o modelo tradicional de comunicação. O heavy user (também conhecido como VUP: viewer, user e player) é um consumidor ávido e devotado que se utiliza de múltiplas entradas no universo transmidiático com o propósito de produzir e compartilhar suas habilidades de “especialista amador”. Estas múltiplas entradas exigem dele uma maior atenção, favorecendo o desenvolvimento de novas capacidades cognitivas e perceptivas, à medida que pesquisa pistas que o auxiliem na resolução de enigmas e problemas.

Assim, aquele consumidor passivo da sociedade industrial torna-se, na era da convergência, o detentor do “capital social”, constituindo-se num dos principais agentes do mercado. É fundamental que as empresas estejam conscientes disso.


6. Poderia citar alguns cases de narrativa transmídia no Brasil?
A Rede Globo de Televisão, por meio do seu Departamento de Transmídia, tem desenvolvido aplicativos que ajudam a expandir o universo de suas telenovelas. O blog da personagem Luciana, da novela Viver a Vida, é um exemplo nacional de como a ligação entre o personagem e o espectador/usuário pode ser intensificada por meio das extensões narrativas. Na novela Insensato Coração, a ex-BBB Natalie Lamour (Deborah Secco), o dono de bar Gabino (Guilherme Piva) e o designer André Gurgel (Lázaro Ramos) criaram sites “reais”, este último oferecendo oportunidades paraproduct placement e merchandising de marcas. A novela possuía ainda de uma página que hospedava conteúdo gerado pelos usuários, além de aplicativos revelando segredos da personagem Norma (Gloria Pires).

Em Tropa de Elite 3: O Inimigo Agora é no Complexo do Alemão, temos um exemplo de fan film nacional, construído a partir do imaginário do espectador. Outros produtos baseados no universo do filme incluem o documentário feito por policiais, Tropa de Elite 3: Operações em Niterói, e o videogame Tropa de Elite, que mostram o processo de construção de um herói do cinema capaz de alimentar o imaginário da sociedade brasileira.

Existem diversos outros cases de narrativa transmídia que serão analisados e discutidos no decorrer do curso Storytelling e Transmídia para Marcas. Alguns mais simples, outros mais complexos, aplicados tanto ao cinema e à TV como às estratégias de marketing desenhadas para os mais variados produtos e serviços.


FONTE: Maria Joana Avellar/ BLOG Escola de Criação

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